terça-feira, 4 de abril de 2017

GUERRA DOS ESPÍRITOS (10)

Resultado de imagem para imagem associação musical antonio malato AMAM
sede da Associação Musical Antônio Malato (AMAM), na cidade de Ponta de Pedras, ilha do Marajó-PA, construída no antigo terreno onde existiu o chalé dos herdeiros do capitão Alfredo Nascimento Pereira e sua mulher Antônia Silva, anterior à casa de dona Sophia Tautonila Pereira e seus irmãos Laudelina Diva Pereira e Rodolpho Antônio Pereira em frente ao campo do Marajoense e hoje a catedral da diocese de Ponta de Pedras.






José Varella Pereira
autobiografia



O chalé do capitão Alfredo em Ponta de Pedras

Meu avô Alfredo foi proprietário de três imóveis na ilha do Marajó, dois na vila de Ponta de Pedras e um em Cachoeira (Cachoeira do Arari), este último o chalé do romanceiro de Dalcídio Jurandir. Como se sabe, originalmente através do francês chalet, tratava-se de um tipo de construção de veraneio na Suíça, geralmente em madeira. O chalé evoluiu em Portugal e chegou ao Brasil como morada campestre, até hoje se conservam chalés na ilha do Mosqueiro que pertenceram a famílias abastadas com função de veraneio.

Chalés na ilha do Marajó serviram de residência permanente a proprietários de classe média. Não tenho dados, mas acredito que os dois chalés do meu avô não foram mandados construir por ele, mas adquiridos de terceiros. O de Cachoeira poderia ter sido adquirido em 1910, ano que ele, com sua mulher Margarida Ramos e os filhos do casal Flaviano e Dalcídio José, mudou-se de Ponta de Pedras para assumir cargo de secretário da intendência local, dirigida pelo coronel Bento Lobato de Miranda. Talvez o intendente tenha facilitado para seu secretário a compra do chalé, sito à travessa que mais tarde veio a receber o nome do dito coronel já falecido, no bairro de Petrópolis; mas não tenho como confirmar a suposição. É certo, porém, que a localização do terreno atendia à característica campestre de chalé na parte extrema da vila, entre o campo de criação de gado e o rio a jusante por trás da mata ciliar. Terreno baixo ademais, sujeito a alagação no período de chuvas, como se depreende do romance Chove nos campos de Cachoeira. O fato do chalé de Cachoeira ter sido construído na baixada contribuiu ao afogamento da pequena Mariinha no quintal inundado levando à neurose de dona Margarida acompanhada de episódios de alcoolismo.

Além dos dois filhos de dona Margarida, meu tio Otaviano Celso Pereira, filho do primeiro casamento, passou a morar com o pai em Cachoeira. Segundo a história oral da família, Otaviano escrevia sonetos e vovó Sophia guardava um desses poemas de seu irmão que a memória não me ajuda a recordar agora, mas apenas a primeira estrofe: Mandas que eu espere, esperarei enfim... Otaviano, temperamento romântico, teria ido de Ponta de Pedras com ânimo definitivo para permanecer em Cachoeira, dizendo na despedida "aqui não fico nem amarrado"... Sophia e Lodica ficaram magoadas com a decisão radical de Otaviano em ir embora de casa: por isto, quando ele adoeceu e morreu em Cachoeira - em circunstâncias semelhantes ao personagem Eutanazio no romance dalcidiano - elas murmuraram sobre suposta soberba do irmão ao deixar a terra natal. Talvez Otaviano fosse dos filhos do capitão com a índia da Mangabeira, o de temperamento mais "difícil", ensimesmado... O índio inadaptado à civilização? 

Papai adorava passar temporadas em Cachoeira. Não era para menos, ele ainda adolescente e o irmão mais velho do segundo casamento, Flaviano; regulava sua idade um pouco mais e conhecia bem os costumes locais. Só a viagem em canoa coberta de panacarica (tolda de palha) a remos, nunca menos de 12 horas de duração conforme a maré; fora o necessário pernoite no Serrame ou no Araquiçaua; já era uma aventura inesquecível. O que mais atraia o jovem Rodolpho era a paisagem de campos abertos, fazendas e 'malhadas' (manadas) de gado a se perder de vista na distância: casos e casos para contar pelo resto da vida... Com exceção das praias olhando à amplidão da baía do Marajó, a pacata Ponta de Pedras resguarda-se na intimidade do Marajó-Açu com seus igarapés silentes. Dalcídio era cinco anos mais novo, de modo que o líder e cicerone cachoeirense para Rodolpho era Flaviano que o apresentava aos conhecidos. O viúvo Alfredo Pereira e Margarida Ramos formalizaram o casamento na fazenda Mãe Maria seguido de festa com muito frito de vaqueiro, iguaria em carne bovina cozida na própria gordura misturada com farinha de mandioca; chegavam muitos convidados vindos montados em cavalos e bois de sela. Comia-se frito de vaqueiro à vontade pegando com a mão, Rodolpho estava acanhado para meter a mão na vasilha, esperando faca e garfo ou uma colher pelo menos... Flaviano foi a seu socorro levando-o para baixo da casa onde estavam reunidos amigos e colegas do irmão mais chegados, que o apresentou e voltou para dançar. Alguém perguntou quem é esse aí? O que estava mais próximo disse é irmão do Flaviano... Aqui a gente pega a comida com a mão, vai não faz cerimônia não... O goiaba, apelido da gente de Ponta de Pedras, ou seja papa-goiaba; estava encabulado mas foi perdendo a vergonha e meteu a mão se deliciando do frito. Aquilo tudo era uma libertação do menino mimado pelas duas irmãs solteiras. E agora? Não havia água e sabão para lavar as mãos... Os companheiros viram o embaraço do filho do capitão Alfredo e lhe deram a dica: hêi, parceiro, limpa a mão na touça de capim... Rodolpho aprendeu rápido. O vinho, suco, de muruci estava uma delícia e ele não se fez de rogado para aceitar mais um caneco.

Em Cachoeira meu avô tinha umas pouco cabeças de gado leiteiro que durante a noite recolhia ao quintal. Cada vaca tinha nome próprio, me lembro de uma tal Orgulhosa boa leiteira e mansa que era de particular estima do capitão... Esta situação periurbana que caracterizava chalés nos trópicos e em Belém do Pará as 'rocinhas' (chácaras) tiveram chalés, tal como se vê no parque zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Quando meu avô se mudou de Ponta de Pedras, em 1910, estava ele com 61 anos de idade completados em Cachoeira onde foi festejado no dia 30 de abril de 1910 e Dalcídio contava um ano de vida. O capitão havia ficado viúvo com a morte de minha avó tapuia, no dia 22 de agosto de 1904, aos 55 anos. Alfredo e Antônia tiveram Sophia, Raimundo, Lodica, Ambrosina, Otaviano e os gêmeos Rodolpho e Manuel (natimorto), presumo então que o casal viveu junto pelo menos 19 anos, pois a história oral dizia que Sophia tinha 18 anos de idade quando sua mãe faleceu de parto, junto com o filho batizado pós-mortem Manuel, deixando órfão o recém nascido Rodolpho Antônio irmão caçula que ela adotou como filho.

Alfredo era professor primário na vila de Muaná donde foi transferido para lecionar na escola pública de Ponta de Pedras, quando então ele conheceu sua futura mulher a índia Antônia, da aldeia de Mangabeira que vinha à escola com suas duas irmãs Serafina, que se casou com o português Filipe Pereira e foi morar no sítio Menino Deus, no rio Paricatuba. A outra índia mangabeuara, minha tia-avó, chamava-se Joana. Não sei se Alfredo adquiriu o chalé de Ponta de Pedras antes de casar com Antônia nem se Sophia, a filha mais velha nasceu aí. Neste ponto as datas da história oral de que me lembro embaralham-se e não são compatíveis umas com as outras. Afinal de contas estamos falando de três gerações de minha família, às vezes quatro.

Próximo à residência de meus avós havia mais dois chalés, na esquina o do senhor Zeca Miranda e sua mulher dona Áurea Boulhosa e vizinho a este o chalé do comerciante português dono da Casa da Beira, senhor João Ramos da Silva e sua mulher dona Iaiá Carneiro: o chalé do capitão Alfredo dispunha de amplo quintal entre os terrenos do tabelião Raimundo Malato e sua mulher dona Domingas Ribeiro Malato; pelo lado direito e do primo de minha mãe Miro Pereira, pelo lado esquerdo. Depois que meu avô enviuvou pela segunda vez ele retornou a Ponta de Pedras e em seguida casou com dona Isabel Trindade e o casal foi morar em uma casa na travessa Lauro Sodré, a chamada rua detrás; a um quarteirão de distância da casa de meus pais. O chalé foi edificado na linha da rua com uma calçada de cimento, havia platibanda com dois janelões para rua e uma porta alta de entrada que abria para um pequeno vestíbulo com piso cimentado vermelho: daí subia-se três degraus mais ou menos para o corredor. Todo assoalho era em madeira de acapu, o telhado aparente pela parte interna não havia forro, deixando ver a forte armação em madeira de lei com vigas, flechal e caibros. As telhas, como quase todas antigas construções por ali, era da olaria Arapiranga, conforme marca em relevo. O que nos remete para a ilha desse nome no arquipélago do Guajará em frente à cidade de Belém que foi propriedade do arquiteto italiano Antônio José Landi (Bolonha, 30/10/1713 - Belém, 22/06/1791) a fim de servir à construção do palácio do governo e das igrejas que ele projetou em Belém do Pará.

O assoalho do chalé ficava levantado do chão cerca de uns noventa centímetros mais ou menos, com a finalidade de arejar e evitar a umidade no tempo das chuvas. A fachada em alvenaria deixava passar o vento através de duas entradas de ar redondas, com grade de ferro, abaixo do assoalho. Esta estrutura havia inconveniente de servir para ninho de morcegos e esconder galinhas e patas de choco, de modo que era trivial surpresa ver no quintal ninhadas novas, a dar mais trabalho para Lodica. Uma ampla sala servida de cadeiras de embalo austríacas em palinha e outras igualmente de palinha porém fixas, uma escrivaninha assinalava o domínio territorial do meu avô embora sua residência com a sua terceira esposa fosse na rua detrás. Embora invisível no chalé na maior parte do tempo, a sala com estantes em verniz de nigrosina pejadas de livros e revistas Chácaras e Quintais, escrivaninha e cadeiras austríacas dos bons tempos eram comarca pessoal do capitão Alfredo Nascimento Pereira. Todos dias ele vinha ver como estavam os moradores do chalé, providenciava alguma coisa, sobretudo com respeito ao material de fogos de artifício - ele chamava "fogo de vista" - da qual era entendido.

Tenho impressão de que naquele chalé nasceram todos os filhos do capitão com a sua aluna indígena Antônia Silva: Sofia, Raimundo (Mundico), Laudelina (Lodica), Ambrosina, Otaviano, Rodolpho e Manuel, sete filhos e sete destinos diferentes: Sofia Tautonila deixou de se casar com um certo alfaiate chamado Queiroz para se dedicar à criação do irmão órfão, ela era irônica e dizia que não se casou porque seu Queiroz quanto tocava violão esquecia a letra da música e quando cantava esquecia o violão... Além de criar seu irmão Rodolfo, Sofia criou também tio Sidraque Pereira e mais tarde Benedito, filho de Sidraque com uma tal Maria que ele como cabo da Polícia Militar encontrou na vida, lá por Capanema, cujo casamento durou pouco e logo separaram-se...

Tio Mundico foi ser prático de navegação do Amazonas, não o conheci, talvez ele já tivesse morrido antes de eu nascer. Pelas lembranças de vovó Sofia este tio vivia frequentemente desempregado e lutava também contra o alcoolismo tornando-se pessimista useiro de um ditado chulo para ilustrar o que considerava falta de sorte, dizendo ele quando urubu está de azar, o debaixo caga sobre o de cima... Lodica chegou a estar prometida em casamento a um rapaz chamado Tobias, não sei o nome de família nem se o mesmo era nativo da vila, o que ouvi dizer pelas duas, Sofia e Lodica, foi que Tobias se despediu dizendo que ia para o Rio de Janeiro, ele "pegou o Ita". Não voltou nunca mais, a última notícia que Lodica teve do namorado foi que estava metido no Comunismo... Naturalmente quando as duas, mais o capitão devoto de Santa Rita de Cássia, e todos quando pontapedrenses e cachoeirenses souberam que Dalcídio foi preso por causa do tal comunismo concluíram logo que esse negócio só podia ser coisa ruim para dar cadeia e tirar juízo da gente.

O chalé, então, conheceu bons tempos enquanto a indiazinha da Mangabeira foi senhora da casa do capitão, depois foi só decadência até ser demolido antes de desabar sobre aquelas duas solteironas para dar lugar à modesta casa de madeira branca, por obra de caridade do senhor José Mariano, dono da serraria do Ponto Certo. Desde a morte de Antônia, restaram no chalé com o órfão Rodolpho, Sophia, Lodica e Ambrosina, esta última era uma mocinha branca como o luar, menina frágil, com apenas dezesseis anos de idade ficou totalmente cega e não durou muitos anos de vida. Certa vez deu-se uma encrenca política ligada, paresque, ao episódio em que antigos partidários de Antônio Lemos, depois da morte do oligarca e colapso da borracha, viraram casaca. Isto é, passaram para o lado do adversário de outrora Lauro Sodré. 

O capitão Alfredo, assim como seu amigo galego Francisco Pérez Varela no sítio do Serrame; permaneceu monarquista fiel à memória de Dom Pedro II e ao decadente partido liberal; na vila as famílias Monteiro e Pereira haviam parentesco e nessa quadra, não sei como, o capitão Alfredo Nascimento Pereira viu-se nomeado intendente da vila de Ponta de Pedras com oposição das famílias Boulhosa e Lobato. O chefe da oposição laurista seria, então, o senhor Pedro Boulhosa, tio de Pedro Boulhosa Sobrinho que mais tarde viria ser chefe local do baratismo (coronel Joaquim Cardoso de Magalhães Barata, interventor militar na revolução de 1930), no Partido Social Democrático (PSD). 

Porém, o intendente até então no cargo bateu pé e não deu posse ao capitão Alfredo como novo intendente nomeado. Dizendo a avó Sofia, achando graça, que o capitão cumpriu um único ato em sua brevíssima gestão enquanto a vila de Ponta de Pedras deve dois intendentes: autorizou o enterro de um correligionário que faleceu naqueles dias. Mas, aí deu-se impasse pois o zelador do Cemitério era do lado contrário e não cedeu a chave do portão do Cemitário para o enterro. Então, que fazer? O remédio foi pular o muro e passar o caixão por cima com o defunto correligionário... Ora, o clima político era dos piores. O capitão desistiu da posse recolhendo-se ao chalé e aos livros sobre fabricação de fogo de vista. Mas, os parentes Monteiros não eram água de beber, ainda mais que um certo panfletário vindo de Belém, cujo nome não recordo; para agradar os governistas andou escrevendo coisas desagradáveis a respeito da oposição.  Estava prometido que se o sujeito voltasse a pisar em Ponta de Pedras iriam fazê-lo engolir o panfleto. Eis que o dito cujo ousou voltar e aí alguém partiu para cima do audacioso com o impresso em punho para tomar satisfação... Então, houve o imprevisto: no meio do corre corre ouviram-se disparos de arma de fogo vindos de diversas direções e, quando tudo acabou, havia um corpo estendido no chão. Um morto! Era só o que faltava para arruinar a paz na pacata vila de Ponta de Pedras: a vítima daquela loucura foi o jovem chamado Joaquim Boulhosa, uma pessoa benquista, dizia tia Lodica, que não matava uma mosca... Acusaram logo como autor do crime um sobrinho do capitão chamado Aristóteles, por ser um dos mais impulsivos oposicionistas da vila. Este alegou como álibi a notória amizade que mantinha com a vítima...  Então quem acertou no pobre Joaquim? E por que faria uma coisa dessas se não fosse um doido? Aristóteles não negou que pegou arma e deu tiros, diz-que, para assustar o panfletário patife, tanto que não o atingiu. E mais, se eu quisesse acertar alguém - disse o imprudente Aristóteles - teria feito pontaria na careca do intendente... Oh, por Deus! -  diria a avó Sofia.

Aquilo tudo, no calor da hora, bastava para incriminar o estovado Aristóteles. A vila de Ponta de Pedras não era Atenas, mas havia uma boa parte de gregos além do agora encalacrado Aristóteles faltava contar com Demóstenes, irmão deste, Cícero, Heráclito, Homero, Hermes, Ovídio e Otávio que não eram gregos mas quase... A polícia criminal de Belém já estava sendo esperada na vila, o acusado estava noivo de Vijoca nossa parenta pelo lado dos Pereira; o capitão sabia dos escaninhos da lei e tinha convicção de que o sobrinho, de fato, estava falando a verdade embora as circunstâncias estavam contra ele. Dada a conotação de crime político, se a polícia botasse às mãos sobre o suspeito ninguém podia prever outro desfecho que não fosse a condenação pelo tribunal do juri e uma longa pena no Presídio São José. Haja a chorosa Vijoca a rezar e fazer promessa a todos os santos... As canoas que saíram de Ponta de Pedras para Belém naquele dia estavam todas sendo revistadas na entrada do rio por uma lancha-vapor a serviço da polícia, inclusive uma pequena igarité do igarapé Panema carregada de lenha para descarregar, dizendo o piloto, no igarapé do Cano como destino a uma conhecida padaria da cidade. O policial mandou encostar a canoa e viu que nela iam somente o piloto e um tripulante. Mandou seguir viagem: entretanto, o procurado estava escondido sob as achas de lenha numa gaiola improvisada... 

De fato a lenha foi desembarcada e entregue conforme declarado. Já o rumo que Aristóteles tomou somente se soube anos depois que ele voltou para casar com Vijoca e, finalmente, enfrentar o juri popular da comarca. Naquele dia distante a polícia do estado ocupou e vasculhou a pacata vila de Ponta de Pedras a procurar o assassino do jovem Joaquim Boulhosa, bem como a arma do crime. O próprio intendente Pedro Boulhosa (tio), naturalmente ofendido pela morte de seu sobrinho, conduzia a diligência pessoalmente persuadido de que Aristóteles era o culpado. Foram de casa em casa em busca de vestígio de armas e munição. Nem mesmo o chalé do capitão Alfredo ficou livre de suspeita, onde moravam as "meninas" Sofia, Lodica e Ambrosina e o jito Rodolfo Antônio, face ao parentesco entre as duas famílias. O intendente pediu licença para revistar a casa - dizendo avó Sofia -, eu disse fique à vontade... Os investigadores foram varejar os aposentos procurando armas e munição. Um deles perguntou o que é que tem neste quarto, respondi é o quarto de minha irmã Ambrosina... O intendente sabia que Ambrosina era uma mocinha cega e doentia, ele foi gentil dizendo aos investigadores para irem embora e se despediu pedindo desculpas pelo incômodo. As duas - Sofia e Lodica -, suspiraram de alívio, o coração só faltava pular pela boca afora.

Foi um risco danado, naqueles tempos brutos, proteger um fugitivo ainda mais naquela complicada situação política. Mas, elas podiam entregar o primo Aristóteles? Podiam? E a pobre Vijoca como ficaria ao saber que aquelas que deviam ser a salvação fraquejaram? Ambrosina coitadinha, inocente, foi muito corajosa sem dar nenhum pio, pois havia com ela dentro da rede embrulhado em lençóis revolveres, pistolas e balas da maldita confusão. Tia Lodica e vovó Sofia pegaram aquelas porcarias e deram sumiço no único lugar que ninguém pensaria ir procurar: a fossa negra da retrete no quintal. Então? Então que o chalé tinha muita história... Por agora é só, até mais tarde, voltarei ainda para falar do chalé do capitão Alfredo na vila de Ponta de Pedras. Sem esquecer a história de Aristóteles e Vijoca que, com certeza, daria um bom romance.










segunda-feira, 27 de março de 2017

GUERRA DOS ESPÍRITOS (9)

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A Cabanagem ou Guerra dos Cabanos (1833-1836), ocorrida na Amazônia foi a única na qual o povo ocupou o poder, a maior e mais violenta das sete guerras da Regência (1831- 1940) incendiando as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Quadro "O Cabano", de Alfredo Norfini.







José Varella Pereira
autobiografia


Sangue cabano: Quem sai aos seus não degenera.

Mamãe sempre dizia, José Maria não vá puxar a teu pai... Certa vez, papai perdeu as estribeiras e se inflamou em meio à discussão dizendo ele, não se fiem em mim, eu tenho sangue cabano... O cabano em apreço de aparência física frágil era um homem gentil, porém havia nele um caráter inquebrantável, muito cioso da dignidade humana sua e dos outros. Aquelas discussões intempestivas tinham causa geralmente no orgulho dele em não pedir ajuda ao padrinho dela, coronel Antero a quem Rodolpho deplorava o mandonismo desenfreado e outras coisas mais que Othilia não gostava de escutar. O problema era este: papai tinha consciência de suas limitações para pegar trabalho pesado e sabia de seu estado social pertencente à pequena burguesia da vila arruinada pelo colapso econômico da borracha. Mas, acima de tudo, Rodolpho não gostava de ficar devendo favor a ninguém... Ele costumava dizer Deus dá o frio conforme o cobertor... Ou repetia seu dito favorito, Deus disse: faz a tua parte que eu te ajudarei.  

Ao contrário de mamãe, que eu adorava provocar sobre crenças religiosas; nunca questionei meu pai sobre a religiosidade dele, talvez por que eu sabia de seu modo pessoal de contemplar a vida e a morte. Acredito que meu pai, no fundo de seu coração, era ressentido com a sua própria vida por ter custado a morte de sua mãe e do irmão gêmeo na hora do parto ocorrido no chalé de Ponta de Pedras no dia 22 de agosto de 1904... Nunca toquei neste assunto doído, não me lembro dele festejar seu aniversário e ter visto ele entrar na igreja alguma vez. Mas, quando passou o censo de 1940, embora eu com apenas três anos de idade não me lembre; ainda posso apostar que ele se declarou de cor parda e religião católica, como quase todo mundo na vila Itaguari... Isto de chamar a vila oras Ponta de Pedras e oras Itaguari, se deve ao fato de que o primitivo nome do lugar ser Ponta de Pedras, mudado com os ventos da revolução nacional de 3 de outubro de 1930, para Itaguari: o povo preferia chamar Ponta de Pedras, que é a tradução em língua portuguesa do nome original Itaguari em língua nheengatu. Porém, assim como a vizinha vila da Cachoeira, abreviatura de Cachoeira do rio Arari dado a um simples salto d'água que havia antigamente; virou Arariúna na revolução e depois passou a Cachoeira do Arari, Itaguari voltou a ser Ponta de Pedras. 

Fosse como fosse, gostando ou não, é certo que papai ficou devendo seu emprego na prefeitura à detestável influência do coronel Antero... Sim, por que se ele ficasse a esperar pelo meu avô, capitão Alfredo, praticar nepotismo ou tráfico de influência para arranjar um empregozinho para o filho seria melhor este esperar sentado. Dizia tia Lodica, como o rapaz desempregado iria sustentar a mulher e o filho que ia nascer? O capitão vivia para os livros e a devoção de Santa Rita de Cássia; ele era outro enjoado cheio de dedos para pedir favor, finalmente por muita insistência de Sophia, a filha mais velha e mãe adotiva de Rodolpho; ele arranjou uma vaga de capataz numa turma de capinadores que iria abrir uma nova rua para as bandas do Cemitério paresque... Sério. A vila de Ponta de Pedras ou Itaguari carecia todos anos, no começo do verão, capinar as ruas cheias de capim barba-de-bode que crescia com as chuvas. Certa ocasião o governador Magalhães Barata sobrevoou Ponta de Pedras e lá do alto viu as ruas e travessas acabado de capinar, a areia fina, branquinha, então ele chamou a vila de "cidade branca"... Aqueles senhores da conversa à boca da noite na praça Matriz gostavam de repetir a dita história. Inventada ou verdadeira, a beleza desta vila dependia sempre de boa capinação... A prefeitura contratava capinadores e lhes fornecia terçados, ancinhos e carrinhos de mão e para dirigir os serviços "in loco" e depois apontar os respectivos nomes de trabalhadores orientando a elaboração da folha de pagamentos eventuais na tesouraria; contratava capatazes. Para isto já precisava pistolão tão humilde a vila que nem vila era... Não que papai fosse pavulagem ou tivesse vergonha daquele serviço de rua, porém além do irrisório salário aquilo era empreguinho temporário. Foi aí, então, que a recém casada Othilia contrariando a seu marido foi pedir ao seu rico padrinho fazendeiro emprego permanente para o pai de seu futuro filho que já estava a caminho. O coronel ficou satisfeito de sua afilhada ir procurá-lo. E foi assim que, gostando ou não de dever favor, seu Rodolpho Antônio Pereira teve seu primeiro e derradeiro emprego público na prefeitura municipal de Ponta de Pedras, onde ele foi administrador do Curro e Mercado Municipal, posteriormente fiscal de tributos municipais tendo atuação nos portos de Belém e finalmente se aposentou por motivo de saúde. Naquela época, a tuberculose pulmonar era uma peste.  

Certa manhã aconteceu o pior, a loucura de mamãe havia passado e a família estava novamente reunida e morando à rua Ângelo Custódio, número 482; na Cidade Velha em Belém, papai acordou indisposto naquele dia queixando-se de náuseas, então mãe lhe deu um copo d'água com sal de frutas que ele pegou e bebeu. Nem um minuto depois, teve ele forte hemoptise. Ficamos todos em pânico e como a socorrista de sempre tia Armentina morava na casa vizinha na esquina da rua de Óbidos fui correndo dizer o que estava acontecendo. Veio logo tio Xandico e o tio Cici também que morava ao lado pela dita rua de Óbidos: naquele tempo médicos costumavam atender na casa dos pacientes. Tio Cici era prático de enfermeiro e Xandico consertava rádios do doutor Cândido Pereira, renomado médico no combate à peste branca. Já tínhamos perdido para o bacilo de Koch o bisavô Raimundo Pereira, tio Isac Vieira e a prima Zezé filha deste com a tia Palmira. Tia Armentina desocupou a sala de sua casa para agasalhar o cunhado enfermo, armou cama e os tios foram devagar levando papai de nossa casa, mais humilde; para a do tio Xandico que melhor era ao tratamento do doente. Não sei como, mas penso que foi a avó Sophia quem avisou na prefeitura que o fiscal Rodolpho estava doente em Belém; então o prefeito Pedro Boulhosa Sobrinho mandou seu filho Lourival visitar o funcionário mandando dizer que ele estava à disposição no que fosse preciso. 

Eu nunca vi meu pai cabano mais gordo, porém o doutor Cândido quando viu aquele homem magérrimo, pálido devido o sangue que vomitou naquela manhã, largado em cima da cama; depreendeu com sua larga experiência clínica, conforme declarou em particular ao tio Alexandrino que seu concunhado não passaria de seis meses de vida.  Mamãe pegou logo o terço de nossa senhora do Perpétuo Socorro e começou a rezar a todos os santos dizendo ela que seu velho iria ficar bom. Não só o velho, tinha algo em torno de 50 anos de idade mais ou menos; ficou bom como ele viveria ainda muitos anos. Naquele tempo a hidrazida estava começando a virar o jogo contra a tuberculose. Além das injeções com horas marcadas que o tio Cici aplicava, tia Armentina incansável com caribé de levantar defunto, mingaus e refeições pontuais; de forma que no prazo prognosticado pelo médico para seu Rodolpho Antônio Pereira passar desta para melhor; o caboco filho da índia morta de parto, com injeções intramuscular de hidrazida, boa alimentação e repouso, pela primeira vez na vida o caboco chegou a pesar mais de sessenta quilos... 

Tio Cici achava que o medico se enganou no exame clínico devido não conhecer a magreza de sempre do paciente. Rodolpho teve, então, foi uma hemorragia estomacal? Seja lá o que tenha sido nosso cabano sobreviveu a todos seus contemporâneos ou quase a todos e veio a falecer com mais de 90 anos de idade. Tio Ritacínio Pereira, médico da delegacia do Ministério da Saúde, não se fez de rogado para ajudar seu irmão a aposentar-se. Othilia apesar de ter sido criada pelos ricos padrinhos, era uma mulher de origem camponesa a quem o trabalho não metia medo. Ela nunca exigiu do marido mais do que ele tinha e graças ao seu piedoso catolicismo acreditava que o pouco com Deus é muito... A gente do povo suportava desaforos e vexações por parte da baronia pé de chinelo do lugar, em compensação falava mal e inventava mil e uma estorias dos senhores e senhoras lhes acentuando defeitos tais como a mesquinhez, a cobiça, avareza, hipocrisia e outros maus costumes, ignorância e tudo mais que fazia a riqueza parecer detestável aos olhos dos necessitados. 

A matriarca dona Liduina, nome inventado; era alvo principal de deboches dos cabocos quando estes queriam dar exemplo de avidez: diz-que, quando o filho dessa senhora, o coronel Lírio, intendente de Cachoeira, foi despedir-se do secretário da intendência, capitão Alfredo Pereira; segundo a avó Sophia dissera o coronel, capitão eu vou fazer uma operação nos rins; deixo eu em suas mãos esta importância em dinheiro dentro do envelope lacrado, caso eu volte o senhor me entregará o dito cujo, mas se eu não sobreviver, o senhor quebre o lacre, confira o dinheiro e fique com ele em recompensa dos anos em que o senhor foi meu leal secretário... Com efeito! O coronel Lírio faleceu na pedra de cirurgia. Sua mãe e o único irmão Justino ficaram deveras abalados, então o capitão Alfredo esperou passar os sete dias de nojo para convidar Dona Liduína a vir ao chalé de Ponta de Pedras ter uma conversa sobre o falecido.

Dona Liduína veio em luto fechado, com a matrona veio o filho Justino e os dois entraram, sentaram-se; o café já estava feito na hora, a filha mais velha do dono da casa veio à sala cumprimentar as visitas e servir o café. Retirou-se em seguida. Mentira, Lodica armou a rede de costume atrás da porta da varanda que dava para a sala de visita onde acontecia a conversa. O capitão depois de dar os pêsames confessou o motivo pela qual ele havia solicitado a vinda da senhora dona Liduina. Uma senhora notável por ter acreditado na pecuária nos campos do Marajó, quando herdeiros das sesmarias debandaram no rumo da cidade grande e foram mais longe para se arrumar. Naquele tempo, a cidade de Belém já tinha muita gente, mas somente uma escassa minoria havia dinheiro para comprar carne verde. Os pobres eram muitos, de fato, mas não tinham dinheiros suficiente se não para comprar peixe de segunda, piramutaba e peixe do mato. Isto seria antes de 1888, ano da Lei Áurea, ou um pouco mais. Liduína ficou viúva e o cabedal de herança era pouco com terras ociosas que precisavam de vaqueiros e de gado, duas ou três escravas e os dois filhos pequenos para criar, Justino ainda mamava. Pois bem, dona Maria Liduína foi à luta, tecia redes no tear em sua casa, reza a lenda que por esta corajosa senhora ser fartos seios, para não parar de trabalhar enquanto amamentava vinha a mucama a carregar a criança fazendo-a mamar o leite da mãe, enquanto a tecelã com as duas mãos livres ia tecendo. Desde modo, o preço do gado estava tão aviltado que, diz-que, dona Maria Liduína podia trocar uma rede por uma vaca. E assim quando o gado voltou a ter preço bom, dona Maria estava rica e o folclore também com tantas anedotas que o povo contava das extravagâncias da branca endinheirada, depois de ter ficado viúva pobre do barão arruinado.

A baronesa foi saber o que o capitão Alfredo tinha a lhe dizer, em luto fechado acompanhada do filho Justino, a velha foi toda ouvidos. Deixa estar que paredes também tinham ouvidos no chalé. O capitão Alfredo fez um longo preâmbulo para, enfim, repetir as palavras do finado coronel Lírio. Terminou a peroração, imagino eu, fazia uma canícula daquelas, a matrona metida em luto dos pés à cabeça deveria suar em bicas e o filho a bom passar o lenço pela testa e as bochechas encarnadas; o capitão com sua voz rouquenha puxa a gaveta da escrivaninha e saca o tal pacote de dinheiro confiado a sua guarda, concluindo por dizer à senhora baronesa que a seu juízo, dele capitão, aquela soma em dinheiro por direito pertencia a ela. Aí, que deu-se a história! A velha muquirana, em vez de agradecer a lisura do fiel depositário, olhou ao filho dizendo-lhe, Justino meu filho, se ele está entregando isto, sabe lá com quanto não ficou... O capitão nunca sentiu-se tão insultado: sentiu falta de ar, o peito ardendo a ponto de explodir, mas conseguiu gritar como jamais. Fiquei com isto aqui, minha senhora, foi com isto que fiquei... O capitão talvez errou por calcular mal a alma humana, pensaria que a branca afinal respeitaria a vontade de seu filho morto na mesa de cirurgia? Dona Liduína por essa não esperava, vindo um cavalheiro tão desprendido e culto. Ela então, sem saber o que responder e incapaz de abrir a mão para deixar ali o dinheiro, se pôs a chorar, Justino se levantou da cadeira austríaca de palinha para ajudar sua mãe a se levantar e ir embora agarrada ao envelope da fortuna. Puxa, capitão - o fazendeiro Justino protestou - o senhor deu banana à minha mãe em minha frente e fez ela chorar... A vó Sophia na rede armada atrás da porta escutava tudo aquilo. Quando todos foram embora ela comentou com a Lodica, bem feito! Quem manda ele ser besta, não sabe com quem se meteu? O que as duas queriam? Que o velho ficasse de bico fechado? E depois? Distribuir com 18 filhos o dote deixado pelo coronel Lírio? Melhor assim, cada um fazendo sua parte e Deus ajudando a todos, conforme a filosofia do filho da índia morta de parto. Tia Lodica preocupava-se com o grande pé de taperebá na ilharga do velho chalé, e este precisando conserto, para isto serviria o dinheiro deixado pelo finado coronel Lírio Miranda, tordia caiu um trovoada, e a gente ouviu o taperebazeiro estalar... Ai, meo Deus, tomara que não caia em cima de casa...

Os brancos eram donos do mundo, porém os pobres da terra sabiam como ir vivendo e se atamancando naqueles ermos lugares e confins onde o gado do vento pasta ao leu e a brisa faz a curva carregando a chuva. Lá longe, nos mondongos, onde o intitulado patrão não desconfia nem imagina até aonde a ilha grande vai dar termo. Roubo de gado e a caça de capivara, jacaré, muçuã e marrecas dentro das desconformes léguas de sesmaria, por exemplo, engendraram uma guerra permanente requerendo milicia e castigo fora da lei. É certo que a corda só arrebenta do lado mais fraco. Ademais a lei era feita pelos mesmos senhores para proteger os que tem propriedade contra quem nada tem... Por consequência, o juiz, promotor, delegado, os vogais da câmara municipal e o prefeito quando já não era um barão ele mesmo, arrumava testa de ferro para o lugar; papai não se espantava quando em seu trabalho de administrador do Mercado ouvia alguém insinuar que o vigário também fazia parte da comandita. 

Pois era assim que intendente ou prefeito sendo também fazendeiro ou dono de engenho, sustentava padre, sacristão e a igreja... Aquele sustento geral da vila se fazia a juízo do fazendeiro ou senhor de engenho como coisa sua, nunca res publica. Do mesmo modo, o povo pensava lá com as suas chulas e toadas do Bumbá. Como diz o outro: que seria do rico se os pobres despossuídos de tudo não fossem trabalhar para sobreviver da pesca e pegar uma caça qualquer de qualquer maneira, fazer roça, tirar lenha para fogão e vender na vila a troco de um dinheirinho para comprar querosene, tabaco, sal, açúcar e cafe; derrubar pau no mato pra tirar madeira para tudo, servir de vaqueiro, apanhador de açaí, canoeiro, tripulante, camaroeiro, cortador de cana, padeiro, carpinteiro; lavadeira, parteira; costureira... As estórias caçoando de ricos fazendeiros, comerciantes, doutores, governadores, prefeitos, vigários, vereadores circulavam à beça passando de boca em boca durante as tarefas do dia. Serviam de temas da chula e do Boi-bumbá... Aquela gente sofria em mãos de unhas de fome, mas também se divertia zombando da própria sina. O que leva pobre pra frente é topada, dizia dando uma enorme risada o preto seu Benedito Carretel, homem muito cortês, porém não era besta não. Sabia que os brancos da paróquia, para se dar bem, teriam que comer em sua mão no que tange a fazer dinheiro com gêneros daqueles sítios onde branco não põe os pés...  

Meu pai era um naturalista nato, prestava muita atenção à vida dos bichos ao redor fossem eles domésticos ou da mata... Os casos da vila mereciam dele comentários marcantes, por exemplo uma tal teoria da baladeira: ou seja, o progresso da vila que nem vila era, consistia em esticar o tempo parecendo ir pra frente, mas quando acaba, mingau de bacaba... Fatalmente tudo voltava pra trás... De tempos em tempos. Havia gente que acreditava num antigo e terrível bruxedo consistente na caveira de um burro enterrada debaixo da igreja... Papai mais depressa concordava que a causa do atraso se devia aos burros que viviam na terra, do que os que jaziam embaixo do chão.

Dona Domingas lembrava-se do tempo em que ela era moça e os cabanos começaram a se vingar de seus desafetos. Invadiam fazendas, roubavam, estragavam, tocavam fogo e marchavam adiante. A senhora se lembrava de noites em claro no rio Paricatuba com os brancos entrincheirados dentro de casa a ouvir remadas fantasmais até altas horas. Lembravam-se do ataque à fazenda Malato e um caso ocorrido na vila da Cachoeira: aí ninguém jamais pensou que houvesse cabanos e portanto eles estavam lá também onde antes havia maltrato de senhores a seus escravos. A tortura do Viramundo, aquela trave que mantinha a vítima com os braços abertos, contra escravo fujão. E outras barbaridades e outras injustiças... Quando chegou a hora dos cativos se vingarem foi a vez dos brancos fugir diante da raiva dos negros enfurecidos. O Bacabal foi mocambo perto do Malato e do Paricatuba, papai contava histórias de quando ele era pirralho e ia com vovó Sophia e tia Lodica passar dias com sua tia Serafina no sítio Menino Deus com tio Felipe, ela era índia irmã de minha avó Antônia e ele um português tranquilo que mais parecia ser ele o índio e não a sua mulher sempre ralhando e trabalhando sem parar. O antigo rio Paricatuba era lugar de felicidade onde o pequeno Rodolpho nadava na maré, aprendia a mergulhar, pegar frutos do mato bubuiando, comer taperebá e miriti mole com farinha... 

O filho da índia morta rápido aprendeu a andar pelas trilhas no mato e se esconder na moita para não espantar a dança dos tangarás... Eu nunca vi coisa igual ao que papai contava: precisava o observador esperar horas e horas até chegar o primeiro passarinho; este paresque era o regente... O primeiro tangará a chegar observava o cenário, papai contava. Eu já como se lá estivesse na mata do Paricatuba aprendiz da dança dos tangarás. Se por qualquer motivo sucedesse algum barulho estranho; adeus tangará!...  Então, carecia ficar quieto. Tangará regente dava o sinal como dizendo com um breve pio, venham... O palco era um pequeno galho de árvore parecendo polido. Aí o regente soltava a nota do começo do baile, a fêmea só espiando os bailarinos se exibir para saber qual deles iria ser seu par na fecundação do ovo, construção do ninho e alimentação dos filhotes. A festa estava feita, voa tangará acima, desce tangará, sobe e desce tangará... O regente piou, todos a seus lugares. Outro pio, o bailado recomeça. Bis. Então, pia o regente 'vamos embora, mea gente'... Tão de repente como chegou, tangará foi-se embora. Papai contava.

Mamãe era uma mulher ativa, nunca iria perder tempo para ir atrás de tangará ou do cordão do Boi-Bumbá; por isso me dizia ela para não seguir o mau exemplo de papai, sobretudo no que diz respeito aos padres quase sempre ausentes da paróquia ou a criticar a santa madre religião católica apostólica romana... Vovó Sophia era uma velhinha baixinha, ajuizada, mas também ela achava que os padres que tanto sermão pregam sobre as famílias, deviam casar e formar família para dar exemplo... Tia Lodica sorria quando se lembrava do caso de um velho vigário de Muaná que tinha lá sua concubina velha também: o padre velho gordo como um gato de estimação que come do bom e do melhor, caducava e cochilava na hora de puxar a ladainha, pés inchados de gota; ele rezava sentado numa cadeira perto do altar, misturava padre-nosso e ave-maria... A velha tapuia, atenta, reclamava: Eh, nhô Sancho, o senhor já errou a reza de novo... Ele acordando, vamos logo começar esse diabo... Chistes iguais a este, irritavam deveras, a catolicíssima dona Othilia. Não é que o filho da índia morta de parto não se considerasse razoavelmente católico... Porém, mamãe queria que nós fossemos na vila Itaguari um retrato vivo da sagrada família: não por acaso ela queria que o vigário da igreja da Santíssima Trindade me batizasse com o estúrdio nome de "Jesus José Maria"... E eu, quando dei pela coisa, protestei: se tal acontecesse eu assinaria, em represália, Sagrada Família Varella Pereira... Mamãe queria por marido um casto São José e antevia para mim, com uns cinco ou seis anos de idade, um futuro padre na família... Até então só um tio-avô chamado Balthazar Varela fora sacerdote na distante Galiza. Porém, reza a lenda caseira que este parente galego fora padre sem deixar de ser mago conforme a tradição, e portanto o velho tio-avô depois que morreu tornou-se useiro e vezeiro em visitar a família de ultramar: no Serrame, vira e mexe, tia Sinhá estava possuída pelo espírito de Balthazar...  

Nosso catolicismo, mui peculiar, entendia-se com os bruxos na Ibéria e com os pajés na ilha do Marajó, sem esquecer pelo lado dos pretos santos voduns e orixás disfarçados nas milagrosas imagens de Nossa Senhora da Conceição, São Sebastião, Santa Bárbara nas horas de raios e trovões... No Serrame não ficou o alto pé de bacurizeiro rachado desde o espingarito até à raiz? Aquilo sim foi um milagre livrando a casa grande a rogos e orações de tia Palmira e minha madrinha Hermengarda..."Santa Bárbara se levantou, / seus sapatinhos calçou / "Onde vais, Bárbara?"/ "Vou armar as trevoadas" / Trevoadas estão armadas. / Derrama-as prá bem longe. / Onde não haja pão, nem vinho,/ nem o choro do menino...". Tal qual um machado de fogo o raio pegou um bacurizeiro na rebolada ao lado do curral, por prova metade da árvore foi ao chão e outra metade não; permaneceu de pé por muitos anos e depois deu frutos como os mais daquela rebolada. Nem rês nem gente foi atingida naquela noite. O que não aconteceria mais tarde com um rapaz chamado Marcos atingido por um raio na cabeça do Trapiche: o pobre virou um pedaço de carvão, na hora, dizia a vó Sophia naquele dia reinou a escuridão na vila. Ela e tia Lodica só ouviram o grande estampido, vozes, choros e gritos no escuro... Passaram levando desmaiado o Brasil, filho de dona Vitória; o raio que matou Marcos sentado em riba de um cofre de aço na cabeça do trapiche, foi pá e te acomoda... O Brasil levou só uma lambada de raspão e caiu longe desacordado...

Ora, o casal da rua detrás da vila Itaguari queriam-se bem, mas às vezes como um fogo que vinha do nada, lá neles, virava um bate boca danado... Aquilo, diz-que, de papai ter, lá nele, sangue cabano para mim até ter mais idade não fazia nenhum sentido. Mamãe havia sangue espanhol ou ela acreditava ter... Na verdade mamãe era descendente de galegos e eu não tinha nenhuma ideia do que é ser espanhol ou galego ou mesmo brasileiro. Porém podia ser uma pessoa branca de olhos azuis que nem mamãe, meu avô Chico Varela, tias e o tio Cici... Cabano o que seria? Papaí era um caboco de cabelo espeta caju, muito tranquilo no trato com as pessoas... Mas, como ele mesmo avisava, não se fiassem naquela frágil e bem educada figura de gente. A primeira vez que vi meu pai perder as estribeiras foi quando, na hora da sesta, ouviu-se um alarido na rua e foi-se ver era um pirralhão de uns quatorze anos de idade que vinha amarrado na corda - que nem negro da terra fugido antigamente - o moleque vinha arrastado por um homem: como ambos estivessem cansados, o capitão do mato, digamos assim, por ser a maneira corriqueira do tempo das candeias quando preto escravo fugia da senzala ao meio da noite levando consigo tão-só uma tocha para alumiar o caminho da fuga muitas vezes estudado.

O homem certamente fora pago por alguém cujo criado fugiu de casa para não trabalhar. Claro que o rapaz não era escravo, nem o homem que o encontrara, lá para os lados do Fim do Mundo, também não era capitão do mato. De resto tudo lembrava o tempo da escravidão passado há 50 anos depois. O moleque chorava em altos brados e o homem gritava, Vambora, te levanta rapaz... Juntava gente vizinha na porta de casa: mamãe começou a gritar também dizendo ela que aquilo era uma maldade... Aí é que eu vi o cabano filho da índia da Mangabeira aparecer, além do mais tinham estragado a sesta dele... Papai virou uma fera! Tomou a corda das mãos do capitão do mato, que ficou pasmo de ver furioso o administrador do Mercado; este um desamarrou o cativo dizendo-lhe vai-te embora, rapaz... E vocês que não tem o que fazer também fora daqui...Eu me senti ufano da atitude de meu pai e já comecei a saber, mais ou menos, o que é ter sangue cabano correndo nas veias. Mamãe sempre exaltava as boas qualidades de senhor de escravos do avô dela, porém sabia que a regra dos mais senhores era a malvadeza dos brancos contra os pretos. Tio Cici cresceu no Serrame ouvindo casos de malvadeza dos senhores, como por exemplo, um tal Maranduba que deu um tiro no escravo de seu irmão apenas por este estar fumando, acintosamente paresque, a sua frente... Aquilo era loucura sem ter a quem recorrer: até chegar o dia do juízo final nas senzalas que os ódios dos pretos contra os brancos extravasou na cabanagem geral.

Mamãe considerava-se, tranquilamente, uma histérica. Dizia mais, que minha avó Maroca era histérica e não sei quem mais na família também. Era histérica dito assim como em geral as pessoas dizem ser mais ou menos nervosas. Ela de fato não sabia o que estava dizendo, mas o que dizia correspondia sim a uma discrição típica de histerismo ademais considerado doença nervosa exclusiva de mulher. Então, na lenda doméstica acreditava-se que boa partes das mulheres daquela família era histérica. Mas um álibi feminino que uma realidade, acredito. Conforme a gente crescia ia aprendendo a ver as coisas como elas são. Uma certa manhã vi minha mãe sob ataque de pânico quando passando do Cemitério vinha ainda longe, mas em direção de casa um desconhecido trazendo um grande terçado que relampejava como uma espada ao sol... Mamãe fez um alarme danado como se o homem viesse nos matar, fechou portas e janelas, pegou a mim e minha irmã para sairmos pelos fundos do quintal varando pelas ilhargas da casa de dona Vitória para nos abrigar com vovó Sophia. Tia Lodica sempre calma e sensata disse que o tal homem só poderia ser o Artur, apelidado Caminhão, por vir da Mangabeira carregando pesos absurdos de paneiros de farinha ou piraíba em grandes cestos sobre as costas chamados aturás ou jamaxis.

Anos mais tarde, quando eu compreendi o significado da palavra 'cabano' naquelas vilas e lugares colonizados ela era muito negativa. No imaginário brancarana, por exemplo, um campônio rústico que nem o tal Caminhão poderia ser um cabano à primeira vista. Ouvi dizer que a imagem de São Francisco de Borja da capela da fazenda Malato, em tamanho natural, estava toda marcada por golpes de terçado desfechados por cabanos. O caso foi o seguinte segundo o povo contava: naquele tempo irados, cabanos corriam de casa em casa, de fazenda em fazenda armados de facas, facões, zagaias e arpões, paus e cacetes ou uma rara espingarda roubada de um branco e iam matando, roubando e tocando fogo em caça aos portugueses... 

Quem eram portugueses, mamãe? Os brancos coitados! Tiveram que fugir frente aos malvados e se esconder no mato... E os cabanos quem eram eles? Eu não sei, dizia mamãe, era gente má... Do lado dos pretos do meu avô Pedro não, por que eram todos gente muito boa. Cabano podia ser o gênio de índio emperreado ... Que nem papai? Ou o Eutanazio do romance Chove nos campos de Cachoeira... Mas o milagre de São Francisco, o povo ainda conta, é que os malvados nada encontrando na fazenda, nem gente nem nada de valor, tomaram-se de ódio contra o santo em sua capela e pelejaram para carregá-la e jogar dentro d'água no rio. E forcejaram, mas a imagem pesava demasiado; que os brutos desistiram de tirar do altar e deram-lhe golpes que deixaram marcas. É uma metáfora colonial. Assim conta a lenda até hoje, a história verdadeira porém não se conta como deveria. Ela vem de muito longe e ainda mete medo, vem do tempo da destruição das Índias ocidentais, do tempo dos navios negreiros, dos brancos degredados e enganados para povoar o espaço vazio que nunca existiu.

terça-feira, 21 de março de 2017

GUERRA DOS ESPÍRITOS (8)

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Oiapoque, polêmico rio fronteiriço de Vicente Pinzón (1500). A poente binacional Brasil - Guiana francesa, última fronteira da Europa na grande ilha das Guianas (Elisee Reclus), terra do El-Dorado deveria desvanecer a rixa colonial de Utrecht 1713. Influências francesas remotas em velhas fazendas na ilha do Marajó com suas casas-grandes parecendo cantão do Loire e senhores feudais transplantados aos tristes tropiques de Lévi Strauss.

Resultado de imagem para foto indio da tribo galina 1892
índio tupi (1892) com seu  porantim ritual antropofágico. Área cultural das Guianas desde o arquipélago do Marajó até a ilha de Trinidad, passando através do canal de Cassiquiare, ocupadas a partir do paleolítico por grupos nômades que se diferenciaram em etnias de línguas e culturas Aruak, Karib e Tupi-Guarani.




José Varella Pereira
autobiografia


Allons enfants - os porões de Paris n'América.

Cerca de 1916, Othilia com pouco mais ou menos dois anos de idade, foi entregue pelos pais aos seus padrinhos em atendimento a insistentes rogos de dona Adalgisa da Silveira Lobato que, até então, depois de vários anos casada com o coronel Antero Augusto Lobato não tinha filhos. A guarda da quarta filha do galego Francisco Pérez Varela e sua mulher Maria Joana de Castro Varela, foi confiada aos ditos padrinhos que a vieram buscar de lancha no sítio Serrame, rio do Canal entre as vilas de Cachoeira e Ponta de Pedras, para a menina ir residir no Porto Santo, sede das propriedades do coronel, situado na Baixo Arari.  Marajó não é apenas uma ilha, a gente deveria saber, são duas mil e tantas ilhas grandes e pequenas. Marajó é mundo entre o oceano e o mar de água doce que se chama Amazonas e tem ainda a terra firme entre as bocas do Xingu e o Tocantins... Por este vasto mundo, habitado de muitos povos andígenas que fizeram a cerâmica marajoara de mil anos de idade, pelejaram holandeses, ingleses, franceses, espanhóis e portugueses.

Passando tempos depois, dona Adalgisa engravidou e teve com grande alegria um herdeiro, batizado Raimundo, Raimundinho chamado, criado como príncipe daquela rica família. Tudo transcorria bem entre os compadres, no cartório de Raimundo Malato em Ponta de Pedras se acha antiga escritura de constituição de uma sociedade entre o coronel e seu compadre para estabelecer uma marchanteria. Porém, a paz foi quebrada no Canal quando depois de algumas eleições no partido da Antônio Lemos, intendente de Belém, combatendo a subversão republicana e maçônica do coronel Lauro Sodré, todos juntos Lobatos, Malatos, Boulhosas, capitão Alfredo Nascimento Pereira e seu Chico Varela, aconteceu uma virada e tanto... 

Eis que, em 1912, após 14 anos na chefia do partido liberal e da oligarquia paraense, a borracha declina, as coisas mudam e o velho cacique Antônio Lemos perde prestígio, foi destronado, arrastado nas ruas e exilado no Rio de Janeiro onde faleceu no ano seguinte. O rival Lauro Sodré já fora eleito o primeiro presidente constitucional do Pará em 1891, sem contudo afetar os conservadores liberais liderados pelo intendente Antônio Lemos, em franca realização de seu modelo de civilização Paris n'América da riqueza extrativista; os lemistas podiam ignorar o governo da província e pelejar contra os republicanos mesmo com a abolição da escravatura, pois as secas do Nordeste tangiam vagas de retirantes para os seringais. 

Meus dois avôs monarquistas gozaram também as vantagens da belle époque. Sodré, nascido em Belém do Pará em 1858, era um militar positivista de renome nacional e Lemos havia em mãos os meandros da província através da malha de relações privilegiadas com proprietários de terra: pouco a pouco, entretanto, foi puindo a coabitação entre o intendente da cidade capital e o presidente constitucional do estado. Mas, quando a economia da borracha entrou em declino aí foi o fim do lemismo e Sodré passou a mandar no senado, no governo federal e no estado do Pará... Claro que nossos bons amigos do interior não iriam suportar muito tempo longe do calor oficial do governo, fosse quem fosse o chefe do palácio que, significativamente, veio a se chamar Lauro Sodré, tendo o palácio Antônio Lemos a seu lado direito. 

Mas, na hora da onça beber água, o suposto espanhol do rio Canal sequer visitava a vila para se informar das novidades. Que eu me lembre de meu avô Varela na vila de Itaguari ele estava dentro do caixão para ser enterrado. Suas leituras no sítio, na hora da sesta na rede larga na varanda; eram retrasadas vindas pela canoa Aracy com o Amâncio, que pegava boletins no Centro Galaico ou o jornal A Província do Pará que a casa aviadora de Antônio Silva mandava. O mais que Amâncio levava da cidade eram boatos que circulavam pelo Ver O Peso e o liberto se encarregava de divulgar pelos sítios da redondeza. Pela parte do capitão Alfredo, na dita vila, quem lhe dava as notícias mais quentes era o atravessador solitário João Catumbi com o bote O Boateiro, os mais interessantes o capitão comentava nas quatro páginas da Gazetinha onde ele editava proclamas de festa religiosa e programas, datas cívicas da vila, sempre dedicado à devoção de Santa Rita; este meu avô parecia viver no reino das nuvens alheado do mundaréu de filhos. 

A avó Sophia contava que o Catumbi levou a Belém correspondência do capitão para ser entregue em mãos do filho Dalcídio... O portador foi cedo da manhã levar a carta, mas teve que esperar pois o rapaz estava trabalhando no jornal onde, naquele tempo, a redação entrava pelas madrugadas até fechar a edição... E a maré estava a ponto de virar, Catumbi teve de voltar sem falar com o Dalcídio, Capitão fui com seu filho, mas não entreguei a encomenda, disse João Catumbi - esta gente é assim, mal arranjam um empreguinho, dormem... Capitão Alfredo Pereira costumava dar expediente na intendência trajando paletó e gravata calçando tamancos, um discurso ou outro e pronto. Meu avô Alfredo havia voz rouca e baixa, lembro-me de que me incomodava ouvir seus discursos, pois eu queria que ele falasse alto e forte; então me plantava a sua frente a bom consertar a garganta para ele perceber que carecia altear a fala.

Terá sido talvez na derradeira campanha de Lauro Sodré ao senado, em 1922, das três vezes que ele foi eleito; que se deu o racha político em Ponta de Pedras, não sei se o coronel Antero já era ou seria ainda prefeito mais tarde. O memorialista Bernardino Ferreira dos Santos Filho, no livro Nas margens do Marajó-Açu, escreve que o coronel Antero Lobato fez uma das piores gestões de Ponta de Pedras, quando foi sucedido por Wolfango Fontes da Silva, chamado Fango; que fez grandes melhoramentos a partir da inauguração da Uzina de Luz com geração elétrica por caldeira à lenha. Coronel Antero com seus correligionários virou casaca e foi comunicar a decisão ao compadre Chico Varela, dizendo ele que na próxima eleição os eleitores do Canal e Curral Panema da seção eleitoral do Serrame iriam votar no nome de Lauro Sodré: o galego era homem duro que quebrava mas não vergava... 

Disse na cara de seu compadre amigo que ele, Francisco (aliás Celestino...) Pérez Varela, não iria virar casaca... Que não tinha duas caras para chegar junto aos moradores e dizer vamos votar naquele que diziam safado, ambicioso e malvado... O coronel argumentou que o preço da borracha ia de mal a pior, e que Meu compadre Varela, não entende da política... O tempo esquentou. Paresque, a Fábia pela porta da cozinha sobre o cercado, fez Psio, psio... hei Amâncio corre, chama seu Cabral, o coronel Antero e seu Chico tão batendo boca... Meu avô quando ficava brabo, me disse morrendo de rir imitando o velho mano Zecão do Livramento, puxava um sotaque chiado danado, Xi compadre Antero, eu xi não voto nem mando votar xi em Lauro Sodré... Xi, de hoxe em diante não tem mais xunta de eleição aqui no Serrame... O coronel era conhecido pela intolerância e não ser obedecido para ele era uma insuportável desconsideração. Compadre Varela, o senhor manda na sua casa, mas não manda nos moradores que vão votar onde eu bem quiser e em quem eu mandar votar... Os dois velhos compadres estavam a ponto de passar às vias de fato. Na lancha Borboleta gente estranha tinha vindo a bordo, como se já o coronel tivesse prevenido para a teimosia do galego, pronto para impor sua vontade. No quarto da casa com as filhas mais velhas Pilar, Palmira e Armentina; minha avó Maroca rezava ao milagroso Santo Antônio pensando na menina Othilia que teria uns oito ou nove anos de idade e iria ficar que nem marisco entre o mar e o rochedo...

Amâncio pegou remo e seu casquinho de piquiá maneiro e foi depressa avisar a seu José Cabral, no sítio das Tainhas, que não demorou trazendo cunhados e parceiros cearenses seringueiros ao Serrame para ver o que se estava passando com aqueles dois brancos enfezados. Viram a lancha de longe com guarda-costas do coronel. Seu Cabral era velho amigo de meu avô, homem de falar brando com sotaque nordestino, magrão, alto, ossudo e cara fechada... Desembarcou e mal deu bom dia ao pessoal da lancha. Foi com sua gente sentar à ilharga da casa. O coronel vendo aqueles cearenses com cara de poucos amigos ficou ainda mais possesso... Saiu bufando, sem se despedir, desceu do trapiche para a lancha e foi embora rio abaixo. Ficou passado, por aquela o rei do gado não esperava, nunca ninguém dentro de seus feudos se atreveu a contrariá-lo...

Chegando à casa grande do Porto Santo, o coronel Antero desembarcou colérico, vinha ainda pálido de contrariedade e dona Adalgisa logo percebeu que a conversa no Serrame não tinha acabado bem. As crianças costumavam correr ao porto, Othilia no meio, para tomar benção do Dindinho. Ele parecia acabrunhado, mandou avisar que na descida do Perge com o gado da Diamantina para o Curro ele iria a Belém esfriar cabeça pois não queria estar presente quando comadre Maroca viesse buscar a filha. A pequena Othilia chorou quando a madrinha Adalgisa disse que ela iria voltar a morar com os pais no Serrame, reza, minha filha; para o compadre Varela e teu padrinho fazerem as pazes... Othilia não podia compreender o que, de repente, mudou entre Porto Santo e o Serrame. Ela tinha mau gênio e brigava quando ofendiam a sua mãe ou ao pai, Madre Solano ensinava o 4° Mandamento - honrar pai e mãe -, sublinhado pelo catecismo de Montpellier. Dindinho e Dindinha eram para a menina como se fossem seus próprios pais...

Aquela abrupta separação iria pelo resto da vida de Othilia, em seu jovem coração, restar como uma ferida que não cicatriza. Durante a adolescência ela teve úlcera deformante ou pioderma gangrenoso na perna com difícil cicatrização que lhe deixou marca. Quando Othilia casou com Rodolpho ela se reaproximou dos padrinhos e meu avô nada disse. Rodolpho era pobre, porém orgulhoso; por vezes o casal discutia por que ele não queria pedir favores ao velho coronel. Quando eu já estava crescido meus pais foram a Belém ver o Círio e no dia seguinte mamãe levou-me ao casarão da São Jerônimo para os padrinhos dela me conhecerem. Dona Adalgisa fez muita festa, seu Antero puxou conversa comigo sobre a escola, me lembro de Raimundinho, era um rapaz nervoso que não parava de fumar acendendo cigarro um na ponta do outro e falava, falava mil coisas com o pai... Eu fiquei impressionado, queria que Raimundinho fosse meu amigo, mas eu era um menino e ele um rapaz inseguro sob peso enorme da responsabilidade da fortuna. Ironia do destino, mais tarde o filho do rei do gado seria motivo de desgosto a seus velhos pais e acabaria na pobreza longe de sua terra.

Quando mamãe surtou e já estava em tratamento domiciliar em casa de seu cunhado Alexandrino, tio Xandico; e a irmã Armentina; o padrinho coronel Antero morreu depois de saber que Raimundinho tendo recebido a herança por antecipação meteu os pés pelas mãos e estava arruinado. A notícia chegou na 16 de Novembro à meia voz. Tia Armentina, disse para o tio, para Lila, para mim e Maria do Socorro, falem baixo, seu Antero morreu... não deixem Otília ouvir... Mamãe havia momentos de lucidez e outros em que mergulhava no mundo dos espíritos e lá parecia ficar dias inteiro... A rua silenciou, passou o derradeiro bonde circular da noite, os tambores do batuque no Jurunas ressoavam longe e eu ia adormecendo devagar, quando de repente um grito dentro do quarto: Antero Lobato, Deus te guarde!... Seguiu-se o mais denso silêncio na casa. Eu tremia em minha cama da cabeça aos pés, ninguém falava nada. E o dia amanheceu. Mamãe estava calma, então tia Armentina arriscou, levou café no quarto a irmã, deu bom dia. Otília respondeu pegando a xícara e o pão. Armentina disse, mana teu padrinho faleceu... Mamãe: ele veio me avisar, que Deus lhe ponha em bom lugar... 

Que mistério era aquele? Quando mamãe se recuperou, graças ao dr. Aloysio da Fonseca e ao médium seu Rafael Ferreira Gomes, mas principalmente ao amor fraterno de tia Armentina; ela quis que eu a acompanhasse em visita à dona Adalgisa que sem nada mais de seu, o filho Raimundinho envergonhado e sumido no mundo, estava em casa de um parente dela, Bertino Lobato de Miranda. Encontro comovente, Adalgisa estava a par do drama da afilhada, sabia tudo através de sua irmã, dona Chiquinha da Silveira.

E eu aqui depois de anos a escrever e restaurar a memória tanto quanto posso, sem faltar à verdade mas sem temor de resgatar o plausível. Volto ao Porto Santo onde minha falecida avó foi buscar a menina Othilia de volta ao Serrame devido a briga dos compadres. Foi a vez das comadres Adalgisa e Maroca se abraçarem e chorar juntas aquela dor de separação. Agora comadre Adalgisa tinha Raimundinho, era verdade e Maroca tinha a volta daquela filha... A final quem mais sofreria da nova situação era a criança dividida entre os pais e os padrinhos. Embora pequena ainda Othilia já percebia os problemas dos adultos que a cercavam e as suas próprias ambições. Adeus madre Solano, adeus amiga Ritinha, adeus aulas de francês, catecismo de Montpellier, etiqueta Parece bem, Parece mal... Adeus viagens a Diamantina... O pior foi chegar no Serrame e ouvir a própria mãe dizer: Othilia, teu pai não quer que ninguém repita o nome de Antero Lobato debaixo destas quatro telhas... Meu avô e o coronel morreram sem se falarem, não pelo coronel que era só rompante e depois se arrependia. Porém Francisco (aliás Celestino) Pérez Varela quebrou, mas não vergou.


Mamãe descendia de emigrantes da Galícia, na Espanha, no século XIX no Pará; e de casais dos Açores, em Portugal, chegados no século XVIII. Papai se enfadava de tanto me ouvir falar de história, agora este meu filho quer saber quem inventou o mundo... Eles dois não sabiam, nem os mais parentes e amigos sempre dispostos a repetir casos conforme se acreditava, sobretudo no que diz respeito à questão do País Basco, Catalunha e Galícia: para todos fins meu avô Varela era espanhol e pronto. A Espanha para mamãe era sustentáculo do catolicismo e da civilização cristã. Eu mesmo só vim a perceber a situação do povo galego anos depois, quando já me encontrava em Brasilia trabalhando como servidor do Itamaraty a partir dos começos de 1973. Meu avô cedo deixou a terra natal a mando de minha bisavó Micaela a fim de fugir ao recrutamento que lhe havia tirado o pai, Pero Pérez Rincón, irmãos e primos como bucha de canhão em defesa da monarquia. E, não obstante este terrível tributo, contraditoriamente era ele fiel seguidor de Alfonso XIII. Eu queria lá saber de nenhum Alfonso!

Quando me contavam que para defender El-Rei a família Pérez Varela pagou alto preço, eu não entendia como meu avô sendo nativo da Galiza e vivendo tanto tempo na ilha do Marajó ainda tivesse sentimentos monarquistas em favor da velha Espanha. Pior, por outro lado, meu avô capitão Alfredo Nascimento Pereira, homem letrado cujo pai foi à guerra no Paraguai recrutado supostamente como Voluntário da Pátria e depois de participar de uma guerra pavorosa onde morreram 60 mil brasileiros e 300 mil paraguaios, regressou tuberculoso com a imagem achada de Santa Rita de Cassia apenas para morrer junto aos seus, também este avô morria de amores pelo imperador Pedro II. Como podia? Como os meus, quantos outros avôs velhos de guerra podiam estar iludidos contando a seus netos um patriotismo caduco? Quando eu nasci o tio Dalcídio foi preso na cadeia de São José por causa do comunismo; vovô Alfredo homem devoto de Santa Rita ficou abalado e pediu a papai para ir a Belém buscar notícias... O comunismo, que diabo era aquilo? Em 1939 estourou a II Guerra e as pessoas assustadas queriam se esconder e fugir da guerra, um tal Caritó foi sentar praça no exército em Belém: mas quando ele entendeu o que era a guerra de verdade desertou do quartel e voltou para se meter no oco do mato até a guerra findar.... Uma cozinheira de dona Adalgisa ouvindo falar da guerra, anunciou que ela quando a guerra chegasse ao Marajó iria se esconder num sumetume lá pra dentro do Anajás. Sumetume era como os índios antigamente diziam para toca de bicho dentro do mato... Meu tio Dalcídio, filho de dona Margarida com o capitão meu avô, foi preso de novo no ano da guerra mundial, 1939, depois foi para Salvaterra escrever os dois romances, logo no índex do arcebispo dom Mario de Miranda Vilas-Boas, de Belém... Era o ano de 1944, tia Armentina, Osmarina e Lila chegaram em Itaguari dizendo que vinham para ir ao Serrame onde meu avô estaria passando mal. Mamãe disse, não sei ainda ontem meu afilhado Zeca do Livramento veio de lá e disse que todos lá estavam bons. O bom foi que a tia deu-me uma grande bola de mangaba e trouxe um catecismo novinho em folha capa branca... Disse ela, o livro do Dalcídio foi desaconselhado para leitura dos católicos. Eu nada entendi, mas sim que a tia estava dizendo que queria me levar ao Serrame com ela.

Aqui está um exemplo dentro de casa, como a guerra dos espíritos podia vir de longe e ao mesmo tempo ter origem na rixa das velhas tribos da região comendo-se umas às outras enganadas por loucos conquistadores brancos. E sutis diferenças entre descendentes portugueses encrencando uns com os outros para lhes arrancar o couro, como tio Xandico contava da dura infância deixada para trás em Póvoa do Varzim e no Pará tendo ele que ser valente para sobreviver à exploração dos próprios patrícios. José Maria Ferreira de Castro, autor de A Selva, não nos deixa mentir. E quanto aos pretos africanos? Seriam estes mais solidários com seus irmãos de cativeiro atirados às feras? Claro, a lenda da família dizia que meu bisavô Pedro foi um bom senhor de escravos, porém outros eram perversos, cantava a chula: Maçaranduba é boa madeira / João Calandrini não é brincadeira... Lembro-me de uns parentes cujos avós, como os meus, foram donos de terras, canaviais e escravos achar graça do tempo das crueldades de velhos senhores surdos e dementes correndo atrás de meninas mato adentro a fim de as estuprar. E mandavam escravos caçar pequenas para eles se servir e vinham de surpresa no canavial à hora da sesta pegar negro dormindo para lhes surrar no tronco. Puro masoquismo. Eles eram assim, mas eram bons - dizia avó Sophia resignada com o mundo e cuidando de ir à novena com sua fita vermelha do apostolado da Oração no pescoço, tropeçando e caindo no caminho da igreja em riba de vacas deitadas no chão escuro da noite. 

Hoje minhas lembranças se misturam a cogitações do futuro, por que na verdade tanto o que se espera quando o que se foi estão presentes aqui e agora. Na verdade não existe mais o Serrame que a erosão do Canal engoliu feito a mitológica cobra grande e a fazenda Diamantina do finado coronel Antero é uma pálida recordação do tempo em que ainda havia o espetáculo da natureza que confundiu e maravilhou um naturalista como Emílio Goeldi. Nem mesmo o barco veleiro mandado construir a capricho por meu avô, San Thiago; deixou de evoluir para ser canoa Africana e depois geleira São Judas Tadeu metida mar afora em más companhias do contrabandos em Paramaribo. O iate Perge do coronel rei do gado foi perdido pelo filho herdeiro em dívidas de jogo, para finalmente ser reformado totalmente em novo iate do qual, a bem dizer, só o nome restou. Assim é o rio de Heráclito que tudo passa na corrente, mas no fundo o rio é o de sempre.

Com as más lembranças da primeira república espanhola a lhe roubar a paz na distância do exílio voluntário no Serrame, o camponês galego lamentou a queda do rei Alfonso XIII, em 1931, e renegou a segunda República enquanto o mundo estava a favor dos republicanos. Em suma, meus dois avôs eram extremados conservadores. Eu cresci ouvindo histórias contadas por meus pais e tios sem contudo ter condições de passar os fatos pelo crivo e entender o passado, sobretudo na longínqua Espanha e Portugal. Agora que fiquei velho e decidi entender melhor minha própria vida, antes que a parca me leve o último suspiro; sou grato aos meios digitais modernos nunca dantes que, pouco a pouco, vão tirando dúvidas de tanto tempo.

A vinda de meu avô Chico ao Pará, por exemplo, os dados que disponho são aproximados com base na memória familiar comumente aceita. Quando ele nasceu exatamente eu não sei, porém sei que faleceu, provavelmente, de um segundo enfarte depois de se recuperar do primeiro há bastante tempo, no sítio onde ele já idoso vivia acompanhado de sua filha solteira, minha madrinha, Hermengarda: início de 1946 aos 85 anos de idade segundo diziam suas filhas e filho. Se de fato foi assim, o filho caçula do galego Pero Pérez Rincón e sua mulher de Astúrias, Micaela Pérez Varela; nasceu em Soutomaior, aproximadamente, no ano de 1861. 

Este dado, embora aproximado, esclarece a guerra na qual meu bisavô, dois filhos e sobrinhos deste teriam morrido. Mamãe dizia que meu avô contava de um tio traumatizado com cruel lembrança de ter matado um inimigo transpassado por baioneta para se defender de ataque em combate: o grito de morte daquele combatente não lhe saía dos ouvidos... O tio José relatava o drama de um amigo seu desertor apanhado e trazido de volta ao acampamento. Submetido imediatamente ao conselho marcial foi condenado com outros desertores a fuzilamento: ao se posicionarem os soldados coube ao tio José ficar em frente do amigo condenado a morte. Então, ele pediu ao comandante que jogasse a sorte para não lhe tocar executar o amigo. Assim foi feito e outra vez eis o tio frente a frente com seu amigo de infância... Mais uma vez a sorte foi lançada e ainda o destino lhe condenava a dar o tiro fatal. Disse-lhe, então, o amigo, José que sejas tu, meu irmão, a cumprir o fado... E desta vez o fado foi cumprido, rezando José para não tremer a mão: condenados juntos o desertor e o atirador. Com todas essas horríveis histórias minha bisavó Micaela mandou seu último filho emigrar em busca de Pedro Peres de Castro, sobrinho de seu marido que se achava no Pará, casado com a descendente portuguesa Ângela Pereira de Castro. 

Pelos anos da primeira república de Espanha, entre 1873 e 1874, o pequeno Francisco, aliás Celestino; estaria mais ou menos com 12 anos de idade. Durou pouco a república e o povo dela estava ausente como na república do Brasil de 1889, mas a Espanha foi sacudida por profunda instabilidade política e social e muita violência enquanto o império colonial se desfazia no Caribe e no Pacífico. Celestino guardou na memória os horrores da guerra que relatou nos serões do Serrame para a família acrescida da carga emocional de um menino que ficou órfão e viu-se obrigado a emigrar aos 22 anos de idade, mais ou menos, antes que fosse tarde e tivesse que seguir o destino de seu pai e dois irmãos. Com base no ano da morte de meu avô e na suposta idade em que ele morreu, eu tinha nove anos de idade e meses depois de minha irmã Conchita nascer, no dia de Santiago, 25 de julho de 1946.

Agora revendo o acerto de contas da memória familiar, com a história dos acontecimentos de época na Espanha, posso começar a entender as razões pelas quais o camponês de Soutomaior havia más lembranças da primeira república e finalmente, em 1931, por extensão ficou contra a segunda república espanhola e não morreu de amores por Getúlio Vargas em 1930... Mamãe hablaba castellano com orgulho apesar de mal falado... Adotada em tenra idade por seus padrinhos fazendeiros que prometeram a meus avós cuidar da educação da menina. Othília era uma pequena inteligente e gostava de ouvir a mestra Madre Solano contar a história de Joana D'Arc, aprendeu a cantar a Marselhesa com entusiasmo, a ópera O Guarani e o catecismo de Montpellier de cor e salteado, nasceu em casa de meus avós no sítio Serrame à margem do rio do Canal durante a Guerra de 1914. 

Por ter se criado fora de casa e também porque as irmãs e Cici, o único filho de Francisco Pérez Varela, não mexiam nas coisas guardadas pelo pai, nem mesmo minha avó Maroca, nunca abriram a cômoda grande de cedro com tampa de pedra mármore que ficava na alcova. Fui eu, o pequeno Currupio mexilhão, quem profanou a arca sagrada com a cumplicidade do Tigre ocupado em coçar as suas pulgas: havia uma gaveta secreta com campainha de alarme. Onde talvez meu avô guardou a fortuna amealhada no comércio da borracha e gastou tudo na construção do barco de seus sonhos, o veleiro San Thiago... Reza a lenda que meu finado avô depois que chegou ao Marajó dali só saiu uma vez a chamado da casa aviadora de Antônio Silva, estabelecido na Marquês de Pombal, em Belém do Pará, em concordata na quebra da Borracha e que o aviador encerrou a conta corrente de anos e anos com o comerciante Francisco Pérez Varela, com haver de $ 50 contos de réis ao dono do Serrame. Não sei calcular o equivalente daquela soma nos dias de hoje. Mas, de todo modo, nas imaginações da família aquilo foi de fato uma fortuna. E pela primeira vez, minha avó Maroca contrariou seu primo em primeiro grau e marido opondo-se firmemente ao projeto do barco para aplicar na compra de gado e fazer um retiro lá fora no campo da Bocaina... Debalde! Seu Chico Varela não dava o braço a torcer. Quando eu abri a gaveta secreta a tal campainha não tocava mais pois os $ 50 contos de reis já haviam se acabado fazia tempo; meu avô havia perdido sua companheira Maroca, vendeu o barco de seus sonhos no estaleiro sem nunca ter feito uma só viagem, a amizade do compadre Antero perdida não se falava debaixo daquelas quatro telhas e o tesouro que eu achei guardado foi um dicionário galego-português usado, que o pirralho não viu dificuldade em ler pois na verdade ainda nem havia terminado a alfabetização na escola Aureliana Feio Monteiro, com a professora Alda Gonçalves, filha de emigrantes portugueses da ilha da Madeira. 

Já velhinha com mais de 80 anos de idade, na minha companhia em nossa casa em Belém do Pará, mamãe surpreendeu o amigo Emile Fayet que eu lhe acabava de apresentar e a mim também ao cantar de repente o hino nacional da França... Mamãe, este é um amigo francês, disse-lhe. Francês? ela se admirou. Sorrindo Emile brincou, Oui, madame je souis français de France... Então a velhinha com seus olhos azuis a brilhar, minha rainha louca; retrucou: Allons enfants de la Patrie... Olhei a Emile e vi uma pequena lágrima rolando na face.

Velha ilha do Marajó, Marinatambalo de Vicente Yañez Pinzón (janeiro de 1500, os primeiros negros da terra na América do Sul), tesos arrombados e cerâmica de 1000 anos de idade levada à Exposição Etnográfica de Chicago de 1893. Na casa grande mesa farta forrada de porcelana inglesa, vinho em copo de cristal, a prata da casa servindo suculentos pratos de caça e peixe aculturados por supimpas receitas francesas em mãos de pretas mágicas e gentis mucamas a servir ao reizulo fazendeiro e sua corte mais algum convidado especial vindo da cidade ou até do estrangeiro: Madre Solano com seu catecismo de Montpeliller e suas pupilas, mais as moças educadas na França e em Inglaterra, paresque digladiando quase sempre em questão de etiqueta que nem Napoleão e Wellington na batalha naval, Parece bem... Parece mal... 


Eram começos do século passado, os brancos da rica fazenda Diamantina, como outras famosas daquela época de vacas gordas educados na França, Inglaterra ou Portugal, quem fosse do ramo de engenharia precisa pelo menos uma vez viajar a Alemanha para ver e comprar maravilhas mecânicas, relógios carrilhões, caldeiras de engenho de açúcar, motores de lancha por exemplo. Feiras de indústria lotavam navios de linha para Europa com famílias abastadas do Pará: desde inícios da colonização do Maranhão e Grão-Pará o regime de ventos e correntes marítimas forçou a separação política e administrava de Feliz Lusitânia (Grão-Pará e Maranhão) do governo colonial da Nova Lusitânia (Pernambuco e Brasil), Mesmo depois da independência nossa metrópole econômica continuou sendo a cidade do Porto, enquanto Lisboa cumpria o papel político dirigente para as duas colônias portuguesas na América e as mais em África. Todavia, a influência da Inglaterra sobre Portugal desde sempre com a mistura das respectivas realezas e os negócios, se estendia autenticamente ao Brasil: e onde houvesse interesses ingleses havia holandeses por perto para colaborar e franceses para disputar.

Por essa e outras novidades diretamente da Europa, o coronel Antero decidiu botar motor de duzentos cavalos vapor em seu orgulhoso barco de transporte, Perge, ele dizia e repetia que seu barco-iate ele não dava, não vendia nem alugava a ninguém. Naquele tempo, os senhores da nobreza papa chibé botavam distância da plebe com seus nomes de tradição, família e propriedade, o iate por exemplo fazia homenagem distante às glórias do antigo império grego com a cidade de Perge na costa mediterrânea da Turquia. Se acaso o dono não soubesse tais sinais de nobreza para isto aturava sabichões de almanaque aduladores, que a troco de suposta amizade e lauta refeição, lhe soprava ao ouvido durante a sobremesa a brilhante sugestão da coisa ao nascedouro. O abaeteuara aventureiro que vinha trabucar no Arari trocando mercadoria pelo peixe seco, jacaré, muamba de capivara, gado roubado. Ou canoeiro de travessia para feira do Ver O Peso batizavam suas igarités com nomes de santos a pedir proteção dos céus aos negócios na terra Fé em Deus, Divina LuzNossa Senhora de Fátima esperanças Rosa de Maio e nomes da natureza Caripirá, Jandaia, Patativa, Rio Marajó, Rio Fábrica... Os mais letrados apelavam a datas históricas 14 de Julho, 3 de Outubro... Bons sentimentos Sincera, e outros manifestavam ilustração Zefiro, Thetis, Africana... Afetos pessoas Dinoca, Terezinha, Mirasselva, Oliveirazinha...

Nós não precisamos ir muito longe buscar na genealogia das famílias tradicionais raízes europeias da branquização do Grão-Pará desde o Diretório dos Índios e a Companhia do Comércio no tempo do Marquês de Pombal. Ali estavam além da maioria de portugueses e galegos Rodrigues, Pereira, Correia, Silveira, Moraes, Ribeiro, Lobato, Boulhosa, Feio, Lacerda, Varela, Veloso, Mendes, Martins, Gama; espanhóis Beltrão, Pamplona, Fontes, Gaya, Azevedo, Miranda; italianos Calandrini, Malato, franceses Chermont, Dacier... Desta margem do Atlântico, oriental para quem cá estava há dez mil anos atrás e ocidental para quem chegava pelos trilhos de Cristóvão, nomes de cristãos velhos Azevedo e Távora por exemplo, se misturaram a cristãos novos como Ribeiro, Ferreira, Mendes. E já foram passando por batismo a afilhados e escravos: de modo que além de ser um quebra cabeças inútil a mania das genealogias vai na contramão da coisa mais preciosa do povo brasileiro que é, sem dúvida, a mistura fina de sua gente. E as etnias então? Etnia é outra coisa: judeu é quem assim se declara, por conseguinte índio e negro também.

Cada fazenda daquelas havia sua própria história, com origens reais ou lendárias no além mar: por um fenômeno humano notável que Adler e Fanon explicam mais depressa que Freud, que um pobre emigrante de Sacavém como disse o francês Coudreau, meia viagem no Atlântico para Belém do Pará já desembarcava dotado de antigas linhagens da nobreza e assim tinham preferência de cargos e funções da civilização. Verdade que aquela fantasia racial civilizatória carecia ser sustentada pelo trabalho de índios amigos, digamos assim; desde o primeiro dia que o francês Charles des Vaux desembarcou no Maranhão para abrir caminho ao senhor feudal de La Ravardière e à colônia da França Equinocial. E, depois com os primeiros mercadores holandeses costeando o Amapá e subindo o Amazonas até Monte Alegre, e portugueses no Pará, negros escravos importados da Guiné e Angola através de Cabo Verde, donde vieram ao Marajó também as primeiras cabeças de gado vacum e cavalos.

Diamantina, então, não era apenas uma grande fazenda de criação de gado nas imensas campinas alagadas em torno do lago Arari muito rico de natureza do trópico úmido americano; suas infinidades de aves aquáticas, capivaras, jacarés, pirarucu, tartarugas, peixes de toda espécie e gados incontáveis em plena vida selvagem. Situada no oriente do lago os primeiros raios de sol do dia, de longe, os verdes campos refletiam o diamante de cada manhã. Além da beleza natural do lugar em seu alvorecer colonial era um fragmento de antigos reinos ibéricos. O coronel Antero Lobato era rei do gado, senhor de grandes posses e mecenas de uma pequena corte de parentes e aderentes. Como de costume, os grandes proprietários tinham seus casarões e palacetes na capital, a maior parte deles na antiga estrada de São Jerônimo (hoje avenida governador José Malcher), o coronel e sua mulher dona Adalgisa da Silveira reuniam duas das mais representativas famílias senhoriais do Marajó e Belém: os Lobato e Silveiras. Embora proprietários da esplêndida Diamantina e casa grande na avenida São Jerônimo vizinha ao palacete Bolonha; a menina dos olhos do coronel rei do gado era o sítio Porto Santo onde ele se refugiava com a corte parental, servido pelo poderoso iate com motor e fabricação alemã, Perge; com que ele reinava sobre as águas, tanto quanto em terra com a sede de seu sonho imperial fundado no Porto Santo.